Upa Neguinho, Elis Regina e Bossa Jazz Trio: aula de história do Brasil e sua música


Elis Regina Carvalho Costa, a voz, o mito. Estrela de brilho único, em 19/01/1982 ela passou para outra dimensão, mas até hoje continua entre nós como insuperável referência.

Em janeiro de 1968, cantando Upa Neguinho, acompanhada por Amilson Godoy ao piano, Jurandir Meireles no contrabaixo e José Roberto Sarsano na bateria – o Bossa Jazz Trio, Elis Regina conquistou uma das plateias mais exigentes do mundo no Palácio dos Festivais em Cannes, e se tornou em março do mesmo ano a primeira cantora brasileira a pisar no templo da música mundial, o prestigiado Teatro Olympia de Paris, abrindo as portas de sua bem sucedida carreira na Europa; com ela, o Bossa Jazz Trio! 

Elis, com seu talento e genialidade, e o Bossa Jazz Trio, com o talento, a garra e o carisma de seus músicos, foram a surpresa do festival e tinham colocado a música brasileira em evidência na Europa! Sucesso já consagrado no Brasil, a canção Upa Neguinho era a nossa marca registrada!

O admirável é que Elis, cantando em português uma música bem brasileira ligada a história dos escravos no Brasil, foi aplaudida de pé por uma plateia de mais de 2.500 críticos de música de todo o mundo que não entendiam nada de português, sendo a única chamada a bisar, num evento onde estavam os artistas que mais tinham vendido discos no ano anterior em seus respectivos países.

Para benefício da história da música popular brasileira, achei interessante mostrar o importante significado da canção que é um marco na carreira de Elis Regina, do Bossa Jazz Trio, e, por decorrência natural, da minha própria história de vida, particularmente pela minha atividade atual como professor de português, história e cultura brasileira na Colômbia.

“Upa, neguinho na estrada/ upa, pra lá e pra cá/ virge, que coisa mais linda!/  upa, neguinho começando a andá/ começando a andá, começando a andá / e já começa a apanhá/ cresce, neguinho e me abraça/ cresce e me ensina a cantá/ eu vim de tanta desgraça/ mas muito te posso ensiná/ capoeira, posso ensiná/ ziquizira, posso tirá/ valentia, posso emprestá/ mas liberdade só posso esperá/ patá tá tri/ tri tri tri/ trá trá trá”

Vocês devem ter notado que quase todos os versos da letra fazem rima em “á”: cá, andá, apanhá, cantá e por aí vai. A composição não pretende ser escrita na linguagem culta, mas numa espécie de dialeto que é a língua dos africanos trazidos para o Brasil e de seus descendentes. É a língua dos escravos, a mesma que nos deixou o delicioso sinhô no lugar de senhor, por exemplo. É esse idioma que vamos encontrar na literatura que tematizou o negro e as perversidades a que foi submetido pelo branco dominador.

Assim, no famoso poema “Essa negra Fulô” (1928) e nos “Poemas Negros” (1947), ambos de Jorge de Lima, vamos encontrar uma dicção, uma fisionomia parecida com a que vemos em “Upa,neguinho”, que faz parte da peça Arena conta Zumbi.

A canção é aparentemente jocosa, leve, cheia de graça, como é essa língua meio portuguesa, meio africana. A interjeição “upa”, tantas vezes repetida ao longo da música, dá ainda um ar brincalhão e mais graciosidade a essa fala de alguém que vê uma criança negra ensaiando os primeiros passos e as primeiras decepções. 

Mas o eu da composição, que, como vamos saber mais ao fim, é um negro adulto, que veio de tanta desgraça, de alguma maneira se alegra e se reconforta na visão do neguinho. Só o pequeno escravo pode fazer com que seu sofrimento tão grande desapareça por um momento.

Mas, nessa canção, o escravo adulto adquire um grãozinho de autoestima ao ver o negrinho. Ele se dá conta de que pode ensinar algo a ele, que possui um saber que vale a pena ser transmitido: capoeira, ziquizira, valentia… O escravo adulto conhece formas de luta e brincadeira (a capoeira), conhece artes curandeiras (ele pode tirá a ziquizira) e tem na valentia sua forma de dignidade. Mas essa dignidade é ao mesmo tempo limitada. Ele não tem o principal: a liberdade, que é o que faz um homem ser homem. Esse escravo tão humano e sensível, sabedor de tantas artes, é tratado de forma infra-humana: liberdade só posso esperá…

Sem liberdade, não há autoestima que se sustente. A autoestima do negro adulto é capenga como os passos do negrinho, cujo desenvolvimento, muito paradoxalmente, se acompanha de mutilação: ele começa a andar, a se desenvolver, e já começa a apanhar. Mas ainda assim existe graça, poesia, em seus passos desajeitados, de criança que mal consegue se equilibrar ainda: essa é a graça da música, que trata no entanto de assunto tão grave, tão espinhoso como a escravidão no Brasil. Afinal, era preciso sobreviver de alguma maneira, era preciso fechar um pouco os olhos e cantar em meio a tanta desgraça.

Sobre os autores

Gianfrancesco Guarnieri

O ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri nasce a 8 de agosto de 1934, em Milão, na Itália. Sua família muda-se para o Rio de Janeiro em 1936, onde Guarnieri faz seus estudos até 1953, quando decide ir para São Paulo. Em 1955, funda, com Oduvaldo Viana Filho, o Teatro Paulista do Estudante. Estreia como dramaturgo em 1958, com a peça Eles não usam black-tie. A montagem tem grande êxito e ganha vários prêmios (em 1981, a adaptação para o cinema ganharia o Leão de Ouro no Festival de Veneza). Entre suas principais peças, estão Arena conta Zumbi (1965), na qual teve como parceiros Augusto Boal e Edu Lobo, Castro Alves pede passagem (1968), Um grito parado no ar (1973). Por esta última obteve o “Prêmio Governador do Estado” como melhor autor brasileiro. Trabalhou como ator e diretor em cinema e televisão.

Edu Lobo

O compositor Eduardo de Góis Lobo nasce a 29 de agosto de 1943, na cidade do Rio de Janeiro. Seu primeiro instrumento é o acordeom, que estuda dos oito aos 14 anos. Aos 16 anos começa a estudar violão. Mais tarde cursa até o terceiro ano de Direito na PUC. Em 1962, lança seu primeiro disco, um compacto duplo. Participa de vários festivais de música popular brasileira, vencendo, em 1965, com a música Arrastão (composta em parceria com Vinícius de Morais) e, em 1967, com a música Ponteio(composta em parceria com Capinam). Realiza diversos trabalhos com Ruy Guerra, Gianfracesco Guarnieri, Vinícius de Morais, Capinam, Chico Buarque e Tom Jobim. Faz trilha sonora para cinema, teatro e TV e lança vários álbuns. Em 1994 recebe o Prêmio Shell pelo conjunto da obra.

Este post é ilustrado por 3 vídeos: o primeiro com Elis e o Bossa Jazz, gravado na Rádio e Televisão Francesa em Paris em março de 1968. O segundo é gravação original da apresentação memorável em Cannes, em janeiro do mesmo ano. O terceiro é uma entrevista de José Roberto Sarsano por Ione Borges da TV Gazeta em 2005, na qual conta a história do sucesso de Elis Regina com Upa Neguinho no II Festival MIDEN do Disco em Cannes em 1968. Finalmente, uma imagem da capa do disco lançado na França na mesma época, com o registro da apresentação ao vivo de Elis acompanhada pelo Bossa Jazz Trio em Cannes. 

Salve Elis, salve o Bossa Jazz Trio, e gratidão infinita por tudo o que vivi!





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