Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos, e com eles fazemos o nosso mundo (Buda). Este é o meu mundo, movido a emoções, intuição e alguma lógica, que aqui expresso através das artes da música e da literatura.
Valsa Brasileira: aula de português e musicalidade com uma obra-prima
Conheci Francisco Buarque de Holanda no teatro da Universidade Mackenzie no ano de 1964, em um show de música popular brasileira. Estávamos todos começando nossas carreiras, ele Chico, Toquinho, e eu com o Bossa Jazz Trio. Foi um evento que marcou minha vida, não só por estar no mesmo palco com estes mestres da MPB como também com a oportunidade que o Bossa Jazz Trio ganhou de gravar o seu primeiro disco, resultado de uma apresentação memorável.
Daí em diante, nossos caminhos se cruzaram por diversas vezes, sendo a mais marcante um show que fizemos em Porto Alegre com o Chico, Nara Leão e Quarteto em Cy, quando ele ganhou o primeiro lugar em um festival de música com a canção "A Banda", um sucesso inacreditável! O Brasil inteiro cantava essa música!
Admiro profundamente a arte do Chico Buarque e tenho orgulho de ser seu contemporâneo, bem como dessa geração de ouro da MPB.
Pois bem. Como parte da minha atividade atual como professor de português, uso muito a música como instrumento lúdico de aprendizado. Uma das obras que uso é justamente "Valsa Brasileira" (música de Edu
Lobo, letra de Chico Buarque). Ensino os tempos verbais pretérito imperfeito e futuro do pretérito com a beleza
da poesia presente nessa letra de Chico e, sobretudo, o competente bordado
linguístico, apoiado no manuseio desses dois tempos verbais.
Veja só a letra: "Vivia
a te buscar / Porque pensando em ti / Corria contra o tempo / Eu descartava os
dias / Em que não te vi / Como de um filme / A ação que não valeu / Rodava as
horas pra trás / Roubava um pouquinho / E ajeitava o meu caminho / Pra encostar
no teu / Subia na montanha / Não como anda um corpo / Mas um sentimento / Eu
surpreendia o sol / Antes do sol raiar / Saltava as noites / Sem me refazer / E
pela porta de trás / Da casa vazia / Eu ingressaria / E te veria / Confusa por
me ver / Chegando assim / Mil dias antes de te conhecer".
É de uma criatividade poética irrepreensível quando, de
repente, a letra vai do pretérito imperfeito do indicativo ("vivia",
"corria", "descartava", "rodava",
"roubava", "ajeitava", "subia",
"surpreendia" e "saltava") para o futuro do pretérito
("ingressaria" e "veria"), não?
Pois esse é um dos momentos
nobres da letra. O valor básico do pretérito imperfeito do indicativo é o de
indicar fato passado cujo término não se define. Quando se diz, por exemplo, "Eu
saía de casa às 7h e chegava à escola às 9h", indica-se que, num período
razoavelmente amplo do passado, a saída de casa e a chegada à escola eram
frequentes.
Com a sucessão de formas do imperfeito, revela-se
que as ações pretéritas do personagem ("rodava", "saltava")
eram frequentes e executadas com um intuito, revelado no fim da letra por
verbos flexionados no futuro do pretérito ("ingressaria" e
"veria"), tempo cujo valor básico é o de situar uma ação ou estado no
futuro em relação a um momento passado.
Assim, o ato de ingressar na casa e o
de ver confusa a amada se situam no futuro em relação aos atos expressos pelo
pretérito imperfeito. Como é mesmo que termina a letra? Vamos lá: "Confusa por me
ver / Chegando assim / Mil dias antes de te conhecer".
Convém lembrar que
no início a letra diz que o personagem corria contra o tempo (literalmente),
descartava os dias, rodava as horas pra trás etc. Na verdade, o tempo é um
brinquedo na mão do poeta, e a gramática não dá conta do talento dele.
Com mestria, Chico mostra um personagem que já tem o amor
interiorizado, já sabe da grandeza de seu sentimento, já sabe como é a amada
que busca, conhece-a antes de conhecê-la, antes que se materialize. A busca pelo amor idealizado. Maravilhoso, hoje e sempre. Viva Chico Buarque pela poesia e Edu Lobo, pela sensibilidade e qualidade musical. Forte abraço aos românticos e apreciadores da boa música!
(Vídeo Edu Lobo e Mônica Salmaso - Adaptado de texto de Pasquale Cipro Neto)
Conheça mais sobre Chico Buarque com a lindíssima composição "Todo o Sentimento"
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