Abreviados: modernidade ou penúria?

 


Como professor de português só posso concordar com Martha Medeiros. Além das vogais do nosso rico e sonoro idioma, também abreviamos a vida: "Abreviamos sentimentos, abreviamos conversas, abreviamos convivência, abreviamos o ócio, fazemos tudo ligeiro, atropelando nosso amor-próprio, nosso discernimento, vivendo resumidamente, com flashes do que outrora se chamou arte, com uma idéia indistinta do que outrora se chamou de liberdade. Todos espiam todos, sabem da vida de todos, e não conhecem ninguém. Modernidade ou penúria?"  

Abreviados - Texto de Medeiros, Martha. Livro Coisas da Vida. L&PM Editores. 

Nem faz tanto tempo assim, as pessoas diziam vosmecê. “Vosmecê me concede a honra desta dança?” Com o tempo, fomos deixando a formalidade de lado e adotamos uma forma sincopada, o popular você. “Você quer ouvir uns discos lá em casa?” Parecia que as coisas ficariam por isso mesmo, mas o mundo, definitivamente, não se acomoda. Nessa onda de tornar tudo mais prático e funcional, as palavras começaram a perder algumas vogais pelo caminho e se transformaram em abreviaturas esdrúxulas, e você virou vc. “Vc q tc cmg?” 

Nenhuma linguagem é estática, elas acompanham as exigências da época, ganham e perdem significados, mudam de função. Gírias, palavrões, nada se mantém o mesmo. Qual é o espanto? Espanto, aliás, já é palavra em desuso: ninguém mais se espanta com coisa alguma. No máximo, ficamos levemente surpreendidos, que é como fiquei quando soube que um dos canais do Telecine iria abrir um horário às terças-feiras para exibir filmes com legendas abreviadas, tal qual acontece nos chats. Uma estratégia mercadológica para conquistar a audiência mais jovem, naturalmente, mas e se a moda pegar? Hoje, são as legendas de um filme. Amanhã, poderá ser lançada uma revista toda escrita nesse código, e depois quem sabe um livro, e de repente estará todo mundo ganhando tempo e escrevendo apenas com consoantes – adeus, vogais, fim de linha pra vocês. 

O receio de todo cronista é ficar datado, mas, em contrapartida, dizem que é importante esse nosso registro do cotidiano, para que nossos descendentes saibam, um dia, o que se passava nesta nossa cabecinha jurássica. Posso imaginar, daqui a 50 anos, meus netos gargalhando diante deste meu texto: “ctd d vv”. Coitada da vovó, mesmo. Às vezes me sinto uma anciã, lamentando o quanto a vida está ficando miserável. 

Não se trata apenas dos miseráveis sem comida, sem teto e sem saúde, o que já é um descalabro, mas da nossa miséria opcional. Abreviamos sentimentos, abreviamos conversas, abreviamos convivência, abreviamos o ócio, fazemos tudo ligeiro, atropelando nosso amor-próprio, nosso discernimento, vivendo resumidamente, com flashes do que outrora se chamou arte, com uma idéia indistinta do que outrora se chamou de liberdade. Todos espiam todos, sabem da vida de todos, e não conhecem ninguém. Modernidade ou penúria? 

As vogais são apenas cinco. Perdê-las é uma metáfora. Cada dia abandonamos as poucas coisas em nós que são abertas e pronunciáveis. Daqui a pouco vamos apenas rugir. Grrrrrrrr. E voltar para as cavernas de onde todos viemos.


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